Cultura e Conhecimento em Terreiros de Candomblé

lendo e conversando com Mãe Beata de Yemonjá

Stela Guedes Caputo
Mailsa Passos
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, Brasil


Conversando na cozinha

“Eu só tenho o terceiro ano primário. Sempre quis estudar, mas meu pai achava que mulher não podia aprender a escrever muito para não escrever cartas de amor. Saí da escola, que na verdade, não era bem uma escola. Naquela época, no interior da Bahia, as filhas dos coronéis iam para Salvador, faziam um curso por lá e voltavam professoras. Elas eram a escola. Não tinha mais essas aulas, mas lia nos almanaques que vinham no Biotônico Fontoura e lia tudo o que podia. Escrever também escrevia. Com carvão, com pedra de cal, com varinha na areia. Acho que foi assim que me tornei escritora. Mas isso eu me tornei. Predestinada mesmo estava era para ser Ialorixá2. Esse era meu Odu3”. A história é contada por Beatriz Moreira Costa, 76 anos, mais conhecida como Mãe Beata de Yemonjá, na cozinha de sua casa, localizada na rua Francisco Antônio Nascimento, n. 42, em Miguel Couto, na Baixada Fluminense. Pelos fundos da casa se chega ao terreiro de candomblé, Ilê Omiojuarô, fundado por Beata, em 1985.


Beata se tornou uma das Mães-de-santo mais respeitadas no Brasil e no exterior, tanto pela manutenção de sua comunidade como por sua atuação militante nos mais diversos seguimentos de Cultura e Conhecimento em Terreiros de Candomblé espaços dos movimentos sociais. Em 1997, ela realizaria mais um sonho e mais uma conquista, que é coletiva, porque diz respeito às mulheres negras e “de santo”. Foi nesse ano que Beata publicou seu primeiro livro, “Caroço de Dendê – a sabedoria dos terreiros”. Sete anos depois, como nos espaços entre as obrigações nos terreiros, publicaria o segundo, “Histórias que a minha avó contava”.
Naquela mesma conversa, entre biscoitos e xícaras de café, Beata contou com muito orgulho, que é descendente direta de africanos, da família Aro, da cidade de Ketu. Os bisavós vieram da África como milhões de homens e mulheres arrancados de sua terra e transformados em escravos. Trouxeram duas filhas, gêmeas, de três anos, Maria da Conceição e Josefa. A primeira morreu no navio negreiro e foi lançada ao mar. A segunda sobreviveu e chegou ao porto de Salvador onde foi vendida junto com os pais. “Minha bisavó quando chegou no Recôncavo ficou alegre porque uma quantidade de escravos vendidos foi para Pernambuco, outra para Maranhão e outra para Bahia. O navio negreiro chega no porto em Salvador e lá era o mercado de escravos que dividia tudo. E podiam ir também para todos os Engenhos ... do Recôncavo, da Cruz, Campina, Calolé, Brandão, Engenhoca. Para alegria deles, meus bisavós foram vendidos para o Engenho Novo. Mas só descobriram isso lá”, diz Beata.
O candomblé com seus mitos, seus rituais, símbolos e sua linguagem sagrada viajou nessa diáspora e foi recriado em terras brasileiras. Sua tradição é mantida e, ao mesmo tempo, ressignificada no cotidiano dos terreiros. A oralidade não é apenas a fala do povo-de-santo, é antes, sua estrutura, sua constituição. Os 81 contos reunidos nos dois livros de Beata são parte dessa tradição oral e que a sacerdotisa ouviu de sua mãe, Maria do Carmo, que ouviu de sua mãe Josefa, a pequena menina feita escrava e que sobreviveu à travessia do Atlântico Negro. São histórias que ela também ouviu não se lembra bem onde e que também pensou em chamar de “histórias de senzalas”. Histórias que foi reunindo por toda a vida e escrevendo em pedaços de papel, cadernos, folhas soltas, à medida que lembrava, à medida que esquecia, que reinventava.

Os contos misturam os elementos fundamentais para o candomblé. Os orixás, a natureza, os animais, os seres humanos, vivos e mortos. Cada um deles traz um ensinamento, “uma moral da história”. Ao narrar essas histórias, seja para seus filhos carnais ou de santo, Mãe Beata mantém viva a memória dos antepassados, como os griots, velhos contadores de histórias da África. Beata sugeriu os títulos de seus dois livros, mas não o subtítulo do primeiro: “como ialorixás e babalorixás passam conhecimentos a seus filhos”. “Foi coisa da editora”, diz ela. E explica: “Com os livros partilhei um pedacinho da riqueza imensa e que nunca se esgota representada pelo Candomblé. Mas o livro é apenas um pedaço, tudo o mais acontece nos terreiros e na vida, no dia-a-dia não só dos filhos e filhas-de-santo, mas de todo aquele e aquela que ama o candomblé. É na vida em comunidade que se aprende o candomblé sejam crianças, jovens ou adultos. É preciso ter vivência. Isso o livro não ensina, nem eu ensino nos livros”.

Este texto quer discutir – do ponto de vista da produção e da socialização do conhecimento, principalmente em relação às crianças e jovens, as duas obras literárias de Mãe Beata, em especial, Caroço de Dendê. Para isso, iremos do terreiro aos livros, dos livros ao terreiro e de novo aos livros e outra vez ao terreiro, para aprender nesses espaços.

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