“Atlântida, Bahia, o mar é o caminho, o gueto, o espinho, a flor,
a ressurreição. Com cristo vamos nessa, subir no calvário e lá dentro da onda
confiamos vós: Mãe, Mulher, Maria, amamentando o dia. Olodum relata o crime
transigente, permanentemente sobre a ecologia, do direito da criança ao
adolescente, o velho esquecido, a mãe, mulher, Maria.
Não debilitado, "samitos gerados". Grupos que formaram
laços influentes. Reprimiu a dor, fugiu à fantasia, de que seria livre e nada
mais sentia. A agressão constante da sociedade, vigente a essa gente que sorriu
a dor, mostrou sua resistência navegando aos mares. Entre fatos e resumos, hoje
eu sei quem sou! E quem diria? Mãe, Mulher, Maria, amamentando o dia!”[1]
As mães, mulheres, Marias anfitriãs nesse longínquo e tão próximo,
capítulo das origens desse país, dessa cidade e de muitas outras Brasil a fora,
indicam pela voz dos poetas, caminhos percorridos em evidentes tutelas
econômicas, religiosas, políticas. Mulheres que souberam rezar e sorrir a dor
em resistências também religiosas, econômicas e políticas, seguem amamentando
relações coletivas de solidariedade com bandeiras múltiplas de lutas e
esperanças.
Assim,
desejo falar de como acredito a constituição de parte da cidade do Rio de Janeiro e procuro mostrar contextos que
encaminharam o importante protagonismo feminino e afro-brasileiro nestes momentos.
Ao
lidar com retalhos históricos cria-se um tecido, com metáforas que ligam
histórias, numa troca, não mensurada, não estipulada. Com isso quero mostrar e
valorizar a complexidade de nossas formações. Busco fazer ligações: histórias,
cidades, mulheres que tiraram potência da vida, encaminhando suas lutas de
resistência nos diferentes processos de subalternização de forma coletiva,
criativa e solidária.
Assim, passos e descompassos deixaram pegadas no caminho da
construção da História do Brasil. Marcas africanas empreendidas aqui, por
seus(as) herdeiros(as) em maneiras de
fazer, próprias de suas cotidianidades nesse caminhar são alguns dos meus
referenciais. Dentre os inúmeros meandros sociais o importante papel das
mulheres negras marca um território cultural denominado por historiadores de
“Pequena África no Rio de Janeiro”. Do avesso da dor, demandas,
potencialidades, re-criações de re-existências estabeleceram intervenções no
refazer da Cidade que, na virada do século XIX, é definida Moderna, em mais uma
investida colonial, importada dos referenciais europeus.
As reinterpretações e revisões de histórias omitidas,
desconsideradas, revelam a complexidade da História da humanidade. Ao mesmo
tempo geram possibilidades de atuação, de pensamentos e diálogos. Contar em
múltiplas vozes momentos tidos como menores, é refazer caminhos, é esgarçar a
malha dos acontecimentos que não se encerraram, ao contrário, se desdobram ao
longo dos tempos e guardam a urdidura de práticas ancestrais mantidas ao longo
dos séculos. Nessa perspectiva busca-se
desconstruir velhos mitos e preconceitos que chegam aos dias atuais
reforçando sentimentos de inferioridade nas populações afrodescendentes. A
tradição, eurocêntrica hegemônica, associa o fato histórico ao surgimento da
escrita, criando fantasiosos conceitos de povos com história e povos sem
história. “Porém sabe-se que a história propriamente dita se dá na interação
entre a humanidade, a natureza e os seres humanos entre si”. [2]
Quando me ponho a recuperar
remotas histórias que constituem a formação cultural dessa cidade, refletido em
circunstâncias locais, um contexto maior, procuro puxar fios que se tornam
importantes nas interações sociais ainda hoje.
Guardando possibilidades de
novas leituras, de novas perguntas, vou compreendendo melhor o quanto essas
atualizações, estão enfronhadas nas dobras da história do Brasil que, ao se
manterem invisibilizadas ariscam diminuir a importância de seus/suas diferentes
protagonistas.
A cultura brasileira, se é que a podemos assim chamar, dado a
pensá-la singular e não plural, é constituída por diferentes culturas, marcando
sua multiplicidade. Essa é ainda uma definição superficial e simplificada,
quando se fala de um país de dimensões continentais, com uma população que ao
longo do tempo se move entre as diversas regiões, por distintas razões, também
influenciando e se deixando influenciar por onde passa.
Essa terra e essa população carregam diferentes ascendências,
todas devendo ser tratadas em suas pluralidades. Sendo em maior número as de
origem africana aqui trazida pelo tráfico negreiro iniciado no século XVI, as
de origem indígena que esse território já habitava, e a europeia que aqui
chegou, em missão colonialista. Esses grupos estabelecem formas de convivências
que vão se alternando, expressando conflitos, negociações, interações, geradas
nas relações históricas de poder, e que vão para além das particularidades
culturais, de cada um deles. Mas, sobretudo é nas relações econômicas e
políticas que vão sendo geradas as desiguais diferenças sociais.
Dessa forma, e de tantas outras aconteceu essa História, e ao
longo dos diferentes períodos, na busca de possibilidades de organização e
sobrevivência, a população afrodescendente, pobre economicamente vai se movendo
entre as brechas políticas e territoriais.
Os arredores da cidade vistos como espaço de maior articulação,
facilitavam a ampliação de redes de práticas clandestinas. Um jogo muitas vezes
silencioso, de ações criativas, uma forma de enfrentar, mas também de se
misturar, contaminar, sem necessariamente afrontar. Agindo com táticas,
maneiras de agir dentro da estrutura maior, para transpor condições
aparentemente intransponíveis. Trata-se da anti-disciplina[3]
que se situa entre a interferência e a mobilidade, composta em tramas sociais
muitas vezes imperceptíveis. E para isso, entendo necessário, percorrer com
atenção os espaços históricos de microliberdades e microdiferenças, pois estas
se estabelecem muitas vezes insuspeitas. O que não significa a inexistência de
reações frontais contra o estado, muitas foram as revoltas populares nesse
período, que enfrentaram a polícia e até mesmo o exército, algumas não registradas
na história oficial.
Roberto
Moura e Certeau, aqui mencionados, tão longe e tão próximos, ajudam-me a identificar
as ações de resistência de vida, no sentido imediato de sobrevivência e também
cotidianamente, nos escapes, nas sutilezas, nas negociações, muitas vezes
silenciosas. Com Sodré(1988), sou instigada a ir um pouco mais longe com o
conceito de força que, ao perpassar a
história da humanidade, foge-se do forte risco de assumir-se uma postura
essencialista, ao tratar de questões étnico-raciais. Conta o historiador que,
estando os muçulmanos, lideres da Revolta dos Malês (1835) presos com promessa de morte ou extradição,
eram visitados frequentemente por sua comunidade que ia em busca do que chamava baraka. A expressão traduz-se em força de vida, poder de
transformação e realização. Muniz, diz que toda sociedade humana guarda
conceito referente a e exemplifica:
“os
índios Dakota chamavam de wakanda; os iroqueses, de oki; os algonquires de
manitu; os melonésios, de mana; os nagôs de axé; a
palavra tuma(força) significa a capacidade de produzir um efeito desejado, para
o grupo étnico majoritário em Gana; os romanos pela palavra vis, designam
força, poder, energia”.[4]
Para Juana Elbein , o axé assegura a existência dinâmica, que
permite o acontecer, o realizar e o devir.
A meu ver marcando a força da expressão estética negro-africana,
usada também como formas subjetivas de resistência, pelas baianas: o torso, o
pano da costa, as pulseiras, os fios de conta e outros balangandãs, se tornam
símbolos culturais brasileiros.
Estes símbolos perpetuaram-se, invadiram grandes salões burgueses,
influenciando e sendo influenciados. Paradoxalmente, ligados às indumentárias
das mulheres dos candomblés, esta é uma manifestação religiosa, que por muito
tempo foi oficialmente reprimida, e não à-toa, ainda hoje lidera o movimento inter-religioso
contra a intolerância religiosa nesse país.
Axé!!
REFERENCIAS
BIBLIOGRAFICAS
CERTEAU, Michael D`.2003.
A invenção do cotidiano 1.Artes de fazer.
Petrópolis: Ed. Vozes.
FONSECA, Nazareth Soares
(org). 2000. Brasil Afro-brasileiro.
Belo Horizonte: d. Autêntica.
Moore, Carlos.
2005. Novas bases para o ensino da Historia da África no Brasil. Artigos
Acadêmicos: Edições MEC/ BID/UNESCO – acaoeducativa.org.br (44 paginas).
MOURA, Gloria;
Paula, Carlos A. R.; Cardoso & Inocêncio. 2001. Entre Áfricas e Brasis. São Paulo: Editora Marco Zero.
MOURA, R. 1983.
Tia Ciata e a pequena África no Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro: Funarte/INM.
SODRÉ, Muniz,
2005. A Verdade seduzida, Por um conceito de Cultura no Brasil, Rio de
Janeiro: Ed. DP&A, 3ª edição.
______________
1988. O Terreiro e a Cidade – A forma
social negro-brasileira, Petrópolis, Rio de Janeiro: Ed. Vozes.
VANSINA , J. A tradição oral e sua metodologia. 1982.
In: KI-ZERBO, Joseph (org.) História geral da África. Tradução: Beatriz Turquettju et al. São
Paulo: Ática. Paris: UNESCO.
VIDAL, Diana, 2005 Michel de Certeau e a difícil arte de fazer história das práticas, in:
Pensadores sociais e história da educação. BH: Ed. Autêntica -
[1] Valmir Brito / Roque Carvalho, letra de música composta para o
Bloco Olodum, 1990
[2] Moore – 2005
[3] CERTEAU, Michael D`.2003, p.82.
[4] SODRÉ, Muniz, 1988, p.79,87.
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