Por
Marlise de Oxum
Iyalorixá
do Ilê Axé Iyalodê Oxum Kare Ade Omi Aro
O
trabalho traz alguns apontamentos sobre o exercício do poder feminino no
contexto da vivência da religiosidade de matriz africana ioruba no Brasil. Isso
implica trazer à análise elementos da memória do passado a partir da tradição
étnico-religiosa iorubá, recriada nos territórios das chamadas comunidades
de terreiro, mas também implica, no tempo presente, andar na contramão da
ideologia dominante a serviço dos interesses das elites – dos homens, ricos e
brancos.
Na
sociedade brasileira contemporânea, globalizada e desigual, os indivíduos não
ocupam o mesmo lugar na sociedade: são definidos com base na pertença étnico-racial,
de classe, gênero, cultura, religião e em outros quesitos, que dão conteúdo e
significado à sua imagem e ao seu “lugar social”.
Em relação
à imagem e ao papel do feminino na sociedade, os diferentes contextos socioculturais
vêm fornecendo distintos elementos, através dos tempos. Esses elementos são
determinantes no processo de formação da chamada cultura nacional, das identidades
culturais no Brasil e da própria memória coletiva dos diferentes grupos
sociais. Um desses elementos fundantes da cultura nacional é a influência da
recriação da tradição ioruba, que se reproduz através dos séculos pela tradição
oral no interior dos espaços do terreiro de
candomblé (o Ilê: casa de santo, xangô, batuque, roça, etc.), ao mesmo tempo em
que estabelecem conexões com as “referências de fora” e com “os de
fora” do Ilê. A geografia do terreiro
expressa, pois, uma ocupação sociopolítica, uma vez que os Ilês são templos religiosos, mas também
são territórios étnicos de reafirmação identitária, casas de moradia, de
acolhimento, assim como às vezes, em virtude da ausência ou da ineficácia das
políticas públicas, espaços de prestação de serviços assistenciais. Aí, as
relações de parentesco - consanguíneo e religioso -, articuladas às relações de
gênero, interétnicas e de classe, regulam relações, não só religiosas, mas
afetivas, econômicas, socioculturais, éticas e políticas. Através da repetição
da oralidade e de práticas vivas que habitam a memória das “mulheres de axé”,
as várias expressões do exercício do poder feminino, ressignificadas cotidianamente
nos territórios dos Ilês, constituem então verdadeiros elos entre o presente e
o passado, elos entre o mundo contemporâneo real e o mundo mítico, elos entre o
território religioso dos terreiros e a vida social.
Acima
de tudo, trata-se de espaço perpassado por significados emblemáticos de
identificação e de sentimento de inclusão e de pertencimento: um espaço de
acolhimento, que possibilita a incorporação do diferente e do discriminado, que,
via de regra, não teria lugar em outras práticas religiosas. No terreiro, os
segmentos subalternizados da sociedade podem experimentar
a possibilidade de reconhecimento e de desenvolvimento de uma nova sociabilidade,
metamorfoseando seus lugares de desvantagem social em posições valorizadas ligadas
à hierarquia religiosa.
Aí
nesses espaços as mulheres, inclusive as negras pertencentes à classe social
mais pauperizada, ocupam altos cargos, diferentemente do que se verifica em
outras religiões. Isso ocorre porque, sobretudo nas casas religiosas mais tradicionais
brasileiras, a organização sócio-religiosa se estrutura a partir da lógica
matrilinear, sendo a figura mais importante na hierarquia religiosa a mãe de
santo ou iyalorixá (iyá = mãe).
Nesse
sentido, um fato importante a observar refere-se à centralidade do poder
feminino de maternar, sendo que esta maternagem pode ser exercida sem estar atrelada
à vinculação biológica. Assim, nesse espaço o maternar é um processo sociocultural
e político de caráter eminentemente coletivo, em termos do que eu denomino como
maternidade extensiva. Assinale-se,
ainda, que o mesmo processo pode ocorrer, embora em menor escala, no caso da
paternagem.
A
historiografia das primeiras casas de santo do Brasil mostra que foi a mulher,
ainda que com a colaboração dos irmãos do sexo masculino, que lançou a semente,
germinou e pariu a reinvenção da religiosidade africana em continente
brasileiro, possibilitando a criação do que hoje se conhece como candomblé.
Esse protagonismo se perpetuou através da chefia espiritual das Casas e da sua
presença real em toda a hierarquia religiosa do templo. As primeiras dirigentes
viabilizaram a possibilidade de nos Ilês se desenvolverem laços afetivos, bem como
de solidariedade econômica, política e étnica, além de ali fornecerem à
população afrodescendente em geral a oportunidade de um espaço de luta contra a
escravidão e de busca de solução para diferentes problemas. Nesse sentido,
esses territórios negros, chefiados majoritariamente por mulheres, podem ser
considerados verdadeiros quilombos contemporâneos, espaços sociopolíticos
de preservação do capital simbólico étnico da africanidade.
Enquanto
professora na UFRJ realizei pesquisa com mulheres adeptas do candomblé e encontrei
recorrentes alusões ao discurso mítico de tradição iorubá para explicar formas
de conduta vinculadas a representações do poder feminino de combatividade, como
no fragmento de entrevista reproduzido a seguir: “não tenho medo de nada...
Sou de Obá, deusa guerreira, que anda com sua espada em punho, pronta
pra guerrear (...)” - Jane, 32 anos. O processo de identificação com a
representação mítica de um feminino combativo parece fundamental na construção
de uma subjetividade pronta para o enfrentamento dos dilemas do cotidiano e
para a luta por expansão de direitos e pela emancipação.
Assim,
o terreiro aparece como uma
possibilidade de recurso de viés emancipatório, potencializador de positivação
da pertença étnico-racial, como demonstra Jane: “na minha certidão vem
‘parda’, mas eu sou é negra. Tenho consciência racial depois que eu
participei da religião afro [depoimento mostrando uma foto em que ela
aparece com trajes rituais e fios de
conta, isto é, com colares de miçangas, identificadores dos orixás da Casa]
... eu aprendi a amar a minha cor”. Nessa direção, acrescente-se que é
comum nos terreiros assistirmos mulheres enfeitando-se para as festas públicas;
por exemplo, trançando os cabelos. Esta também é uma atividade tradicional do
comércio feminino de tradição iorubá, que é aprendida em família e, recriando a
memória, reatualiza significados de pertença.
Considerando-se
o lento e constante processo de desafricanização dos símbolos negros e,
portanto, sua desetinização, o papel do poder feminino de preservação do
conjunto desses bens simbólicos legados pela tradição religiosa iorubá ganha
relevo, sobretudo porque fora do campo religioso nenhuma das instituições
culturais africanas sobreviveu. Cabe destacar aqui o papel educativo no
contexto do exercício do sacerdócio pela liderança religiosa -“a mãe de santo”.
Contudo,
um dado a considerar refere-se ao fato de que o aprendizado dos valores nessas
comunidades vem deixando de priorizar a aquisição de conhecimento dos
fundamentos dessa tradição pela transmissão oral familiar interna e pela
vivência no culto, dando mais ênfase à aquisição de conhecimento por via
midiática ou pela literatura, o que pode vulgarizar esse conhecimento legado
pela tradição iorubá.
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