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AFROBIOÉTICA E AS COMBINAÇÕES DE IKÚ
Iyá Wanda de Omolú
            Discussão nova e desafiadora, sendo bem verdade que nunca mergulhamos no debate deste assunto. Mas, como dizem os jovens de meu Ilê, “demorô!”.
         A Afrobioética carece de reflexão e de diálogo ampliado por nós, adeptos de religiões de matrizes africanas. Conversei sobre o tema com os meus mais velhos, no universo de zeladores e zeladoras de meu convívio e, conclui que não há ainda um posicionamento litúrgico religioso formado.
            Resolvi então, passar um e-mail para a organização do evento, pedindo esclarecimentos sobre a pretensão na abordagem do tema. A resposta obtida foi: “A ideia é abordar o conceito de Morte, ou seja, o retorno da massa de origem e as prerrogativas desse retorno. Como, por exemplo, os casos de Morte prematura, doação de órgãos e adicção em álcool e drogas, incluindo o tabagismo”.
            Partindo dessa prerrogativa, comecei a construir a abordagem do tema, procurando me isentar das interpretações eurocêntricas ou aculturações, eliminado assim qualquer visão não africana.
            As religiões de matrizes africanas no Brasil têm sofrido através dos tempos, problemas sérios no que tange a ética e a teologia. Dois assuntos que, muito embora soem de formas diferentes, devem ser discutidos no conjunto do pensamento teológico. O nível de informações que chega aos operadores da religião é sem duvida o mínimo e a falta de um grupo (clero) constituído, em nível consultivo, tem nos levado a situações de interpretações errôneas, atos confusos e promoção da degradação da nossa religião diante da sociedade.
            O mundo a nossa volta evoluiu, as outras religiões formaram conselhos sacerdotais ou consultivos. Mesmo as religiões e seitas antagônicas mantiveram diálogos entre si, com a finalidade de dar respostas imediatas aos seus fieis sobre os diversos assuntos, onde um determinado “dogma” da religião pode ser desmentido ou revisto.
            E Nós? Nós, religiosos de matrizes africanas, quando sabemos que não podemos fazer algo, pouco questionamos porque podemos ou não fazê-lo. Muitos são os que não conseguem mensurar hierarquicamente o que é um Orisá, se ele é um Ébora ou um Irunmólé, ou mesmo que espécie de ser é ele, se é divino ou divinizado, emanado ou não.
            A meu ver estas questões são relevantes para a evolução de nossa religião. Porém, além destas surgem outras que, com a evolução da humanidade, precisam de respostas imediatas.
            Precisamos gerar mais espaços de discussão como este para dialogar e clarificar a relação das religiões de matrizes africanas com a sociedade atual. Existem muitas questões polêmicas para serem discutidas e resolvidas.
Comecei a pensar nos valores africanos de:
 - Vida e Morte.
 - O que é o outro do corpo?
 - O que interessa pra Ikú, o corpo ou a alma?
 - Qual é a concepção de impuro no candomblé e o que contamina o outro?
 - Morte pré matura.
 - Doação de órgãos.
            Aí meu Ori ferveu, pois o assunto é polêmico demais e, junto com as polêmicas, surge à seguinte interrogação:
Quais são os reais valores de matrizes africanas e o que foi absorvido por nós da cultura do colonizador gerando aculturação?
            Nós sabemos que quando a pessoa vem para o Ayê, ela já vem com um acordo estipulado para a volta. Sabemos também que o espírito não morre e que só Olodumare e Ori têm permissão para dizer o que a pessoa vai fazer com o seu corpo. E que temos que respeitar a soberania de Orí.
            Outro fator que acho importante frisar é que na cultura africana inexiste céu e inferno. O lugar definido para onde os entes falecidos vão é o Orun. No sentido amplo, o Orun, o nosso céu, é o local de existência e morada  de Olodumare, dos Orixás e espíritos diversos. Seus habitantes são os Ara Òrun que diferentemente dos Ara Àiyé (habitantes da terra) não precisam existencialmente do Èmí (respiração), para sobreviver.  Neste espaço, cada grupo de pessoas formam as egbé òrun, sociedades no céu. Algumas benéficas e outras não.
            Na sociedade africana, se teme o ser que nasce diferente dos padrões gerais, pois eles têm no seu âmago sedimentado, a certeza de que assim como o Ori se determina antes de encarnar, determinados sinais corpóreos, tipos de concepção e gestação, formas de nascimento, compleições físicas do bebê, mortes ou acontecimentos ao redor deste evento, são pistas de quem é o espírito abrigado no corpo recém-nascido, do seu ipin (sina),de ìwà (caráter) e presságios de como irá atuar de forma positiva ou negativa na sociedade.
            O universo e a Criação acontecem simultaneamente em dois planos: Aiyé, o mundo tangível e Òrun, espaço místico habitado pelas Personalidades Sobrenaturais, Ancestrais e os "duplos" de tudo o que se encontra manifestado no Ayé. Se a alma ao encarnar, deixasse Òrun “vazio” de sua presença, não poderia viver em Aiyé. Sem existir em Òrun, nada se manifesta na Criação. Òrun-Aiyé não são mundos independentes, rigidamente separados. Coexistem juntos, em dimensões distintas. O africano, antes do advento dos tratados esotéricos, já sabia que “o que está em cima é igual ao que está em baixo”, num plano invertido. O Aiyé é um reflexo projetado da realidade essencial existente e em processo no Òrun. Eles juntos formam  a unidade dos dois níveis da existência gerada por Olodumaré no Igba-odu, a cabaça de duas metades, complementares, indivisíveis, onde cada uma para ser, depende da outra.
            Existe na África uma sociedade chamada Musso, sociedade essa que deu origem ao culto de Egungun, dentro dessa sociedade são abrigados os Abikus (A = Nós, Bi = Vida, Ku = Morte, quem nasceu com hora determinada para morrer), os Ibejís, ElebéOmon e Musso filho de Musso, dentre outros. Essa sociedade é responsável pelos acordos que fazemos ao vir pro Ayê. É através da sociedade de Musso que se condiciona o retorno ao Orun em suas diferentes formas, de acordo com o destino a ser cumprido. Os musso provocam o próprio aborto sem chegar a nascer, alguns marcam a data de sua morte ao ver o rosto de sua mãe, outros aos sete dias de nascidos, outros para quando o irmão mais novo nascer, desencarnar ou casar, ou ao construir família, são inúmeros os exemplos.
            Para Iku não importa como o corpo será entregue, o que importa é o sopro de vida.  O corpo na Morte é entregue a mãe Alalé (a Terra).
            Esse dado indica que as relações de doação de órgãos, operações ou alterações no corpo não interferem. Como exemplo disso, temos mulheres que por motivos de doença, nascem perfeitas e morrem sem uma das mamas, ou seres humanos que sofrem acidentes e morrem sem algum membro, ou aqueles que alteram seus órgãos genitais por compreenderem que essa opção lhe provoca um bem estar em vida.
            Mas cabe ressaltar que qualquer interferência deve ser feita em comum acordo com Ori, caso contrário o corpo pode apresentar rejeição. A doação de órgãos é vista como uma oportunidade de prolongamento dos dias de vida do indivíduo, mas na verdade só ocorre porque de alguma forma o ato foi permitido, estava no contrato. Pois quando é chegada a hora, é a hora. Não há adiamentos.
            Tem pessoas que colocam prótese e o corpo rejeita e outras já são bem sucedidas. Alguém pode receber um novo coração e ter uma morte por acidente.
            A hora que acabar o sopro de vida no corpo, Iku o leva de volta não importando se ele ou ela doou orgãos, fumou, se é criança, velho, homossexual. Não importa.
           O ser humano está a serviço dos Orixás e estes estão a serviço da Humanidade. Não há atitudes humanas que não passem pelo Ori, que é soberano.
            Logo as polêmicas como aborto, doação de órgãos, transexualidades, orientações sexuais ou de comportamentos como o tabagismo e alcoolismo, passam pelas relações de bem estar social e não necessariamente pelos duplos explicados acima.
            A morte chega pra todos! Repito: Para Iku o que importa é o sopro de vida, que foi dado ao nascer e é retirado ao morrer.
            E concluindo, temos de nos preocupar em gerar um código próprio apoiado nos reais valores das religiões de matrizes africanas, para que seja aprovado, respeitado e transmitido entre nós. Fazendo valer os direitos das religiões de matrizes africanas as quais estamos ligados, dignas de  respeito e valorização.

Bibliografia:
BENISTE, José. Orun-Àiye: o encontro entre dois mundos: o sistema de relacionamento nagô yoruba entre céu e terra. 7 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
CARNEIRO, Sueli; CURY, Cristiane. O Candomblé.  In: NASCIMENTO, Elisa Larkin (org.) Guerreiras da natureza: mulher negra, religiosidade e ambiente. São Paulo: Selo Negro, 2008.
COSTA, Sérgio; DINIZ, Débora. Ensaios: bioética. São Paulo: Brasiliense; Brasília: Letras Livres, 2006.
NASCIMENTO, Elisa Larkin (org.) Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009.
UNESCO. Declaração Universal sobre bioética e direitos humanos (2005). In: GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel; SAADA, Alya (orgs.) Bases conceituais da bioética: enfoque latino americano. São Paulo: Gaia, 2006.  p.255-269

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