O Feitiço do Gato Cego

por Ogan Cacau

A convivência com seu José era muito interessante e curiosa, era o modo dos africanos, como ele mesmo dizia. O bom humor fazia parte do seu cotidiano, mas às vezes por uma simples palavra mal colocada e que para ele não soasse a contento o mau humor também aflorava e não deixava passar de quem quer que fosse.

Certa vez o vi encomendar aos meninos da rua em que morava que se encontrassem um filhote de gato bem estropiado, cego ou aleijado que o trouxessem para ele, como de costume não perguntei nada e ele nada comentou, à tardinha conversando disse.

 _ Meu filho, vou dar uma lição na dona Maria (comadre Fiota) ela esta bem abusada para o meu gosto, sabe que um dia desses falei para ela dar ossé (limpeza) nos seus orixás e ela me respondeu que eu me preocupasse com os meus que os dela ela sabia a hora de cuidar. Ah, meu filho, não prestou, na mesma hora troquei língua em dialeto africano que a negra deu um tropeção no quintal que quase arrancou a unha do dedão do pé o tampão do dedo abriu, era sangue pra todo lado, lá veio ela chorando pedindo agô catei umas folhas lavei o pé dela que no dia seguinte já estava desinchado e com poucos dias tinha sarado, mas não estou satisfeito o orixá na hora me respondeu e agradeci só que ela acha que foi pela malcriação que fez comigo agora vou mostrar a ela quem manda na roda é o veio, a força da roda grande faz a pequena mover, por isso você me viu encomendar aquele filhote de gato estropiado, não é fácil encontrar, mas se o que quero fazer tiver que ser feito o bicho aparece em três dias do quarto dia em diante eu já não posso fazer mais o feitiço e, não farei.


Novamente a palavra do velho era forte, tinha axé, como ele dizia, eu nasci e cresci dentro do Nagô, passei pelo Mojuba (ritual sagrado) e fiz juramento com meus mais velhos, disso ele se orgulhava e por conta suas palavras eram sagradas e no outro dia, pela manhã o gato apareceu, um menino veio a sua porta trazendo um filhote horrível, magro, cego de um lho e manco de uma pata dianteira, seu José gratificou o garoto com umas moedas e falou.

_ De onde você foi buscar este terror, tirou esse gato da garrafa?
O menino disse que achou ele na linha do trem na estação de Madureira, tomou abenção do velho e saiu correndo.

O velho começou a rir e disse esse está no ponto e cantou para o gato.

                                               Nasci para sofrer
                                               Que sorte
                                               Ó meu Deus
                                               Que triste sina
                                               Da-me a morte.


E ria como ele só.

No outro dia à tarde fomos à casa de comadre Fiota e levando o gato numa caixa de sapato, também comprou um litro de leite, dizendo:
Dou presente, e dou também a comida para alimentar o bichano.

Ao chegar, foi logo dando o presente a velha ao ver levou um susto, que é isso seu José de onde o senhor tirou uma coisa dessas?

_ Dona Maria, o bichinho é de Deus, é feio, mas tem direito a vida e a senhora não vai botar o coitadinho na rua, eu já trouxe o leite.

 _ Seu José falou a velha bufando de raiva ele é manco de uma pata.

A senhora pensa que é só isso, arrematou o velho, é cego de um olho e está com sarna.

Não isso é demais, pode voltar com o presente que eu não vou criar esta coisa.

A esta altura seu José já o tinha soltado na sala e colocara o leite numa lata de goiabada que trouxera no bolso, o felino esfomeado bebeu tudo e foi deitar no canto da sala com fraqueza.

Olha dona Maria o bichinho já se acostumou com seu novo lar e escolheu aquele cantinho para ficar, não é uma lindeza?

Seu José tomou café, comeu biscoito e Dona Maria pedia, olha seu José leva este estropício daqui, eu vou sumir com ele.

A senhora não vai fazer uma coisa dessas, olha bem o olhar de piedade que ele faz para a senhora, mesmo com um olho só, e danava de rir, e foi embora, deixando seu presente.

Ao voltarmos para sua casa, aventurei um comentário, seu José, ela vai jogar o gato fora, o senhor não acha?

Vai tentar jogar, porque aquele de lá não sai mais, você verá, daqui alguns dias vamos voltar e você vai constatar o que estou falando, fiz um feitiço com os pelos da ponta da cauda e botei na soleira da porta dela e com algumas evocações em Nagô, plantei ele ali, ela pode fazer o que quiser que embora ele não vai.

Aí que fui entender tudo, ele encomendou um gato, o bicho estropiado apareceu, era o que ele queria, se ela não podia cuidar do Orixá que era limpo e puro, então cuidaria do feio e estropiado, dito e feito, ao voltarmos após uns dias à casa de comadre Fiota, a negra estava revoltada e foi logo dizendo.

_ O que foi isso que o senhor trouxe pra minha casa, já tentei levar o gato pra tudo quanto é lado, ele vai pela manhã à noite ele volta, já não agüento mais, o que foi que o senhor fez?

Calma Dona Maria, vamos conversar, fique tranqüila que vou lhe explicar tudo o que fiz, entenda que é para o seu bem, lembra quando falei para a senhora dar ossé, nos orixás e a senhora fez aquela malcriação me dando uma resposta atravessada? E que na mesma hora a senhora tropeçou, não foi? Quem é da lei do orixá às vezes um só castigo não basta por isso encomendei o bichano e ele surgiu com menos de três dias para que pudesse fazer o feitiço que a senhora merecia, fiz na sua porta e pode ver que o pelo do rabo dele foi cortado e nada vai tirar ele da sua casa, aprenda a lição à senhora deve cuidar de quem cuida da senhora, os orixás, que estão sempre lhe protegendo lhe dando força e disposição para trabalhar e ganhar com dignidade o pão de cada dia, com saúde para trabalhar também para o orixá de quem precisa isso não é proteção, amparo e carinho dos orixás para com a senhora? E o que eles lhe cobram? Obrigações mirabolantes, que a senhora não pode fazer? Não nada disso eles só querem ser cuidados, sentirem a sua mão o seu hálito em cima deles para poderem lhe ajudar ainda mais, não é isso? A velha com humildade ouvia o sermão do velho calada, apenas balançando a cabeça em sinal afirmativo. Ao terminar ele também sabia agradar e acariciar dizendo.

_Venha cá Dona Maria e me dê um abraço, eu só quero o seu bem.

A velha deitou-se no chão fazendo o dubale (forma de saudar os orixás ocurim (homens) ao levantar e tomar abenção de seu José Xangô a pegou abraçando-o fortemente que emocionado rogou malembe, misericórdia a velha Fiota, conversando em língua Nagô). Xangô atendeu ao pedido do velho, mas disse que o bicho ela teria que cuidar até o animal morrer, era para ela lembrar de cuidar dele também e foi embora.

Seu José passou o recado para ela que já sorrindo ouviu e acatou.

Interessante que eu ao voltar após alguns meses à casa de Dona Maria, o gato já estava grande andando torto e batendo nas paredes, só que forte, feio que dava dó, mas com saúde e já tinha até nome que sintetizava toda a história, seu nome era Alerta, o que ninguém entendia de alerta o gato não tinha nada, mas para ela Alerta era o sinal, o aviso do compromisso de sua obrigação mensal de zelar pelos Orixás.

Um comentário:

Anônimo disse...

É Cacau...
Ou se aprende por bem, ou na pancada!!!, mas o importante foi a lição no final.
Rafael Bittencourt.